22 de Agosto
boa noite, boa noite a todos
obrigado por terem vindo ao teatro
e agora vou directo ao que interessa
estou aqui no palco para vos contar uma história
é uma história real, passou-se comigo
e apesar de se ter passado comigo é uma boa história
por isso, se vieram cá para ver teatro
talvez seja altura de vos avisar que não estou
aqui neste palco para fazer teatro
estou aqui, eu mesmo, eu pessoa real
eu, que vim agora da vida real
lá de fora da rua, dos restaurantes e dos táxis
de onde vocês também vêm
e estou aqui para vos contar uma história
que é igual a fazer teatro, mas sem merdas
sem merdas à volta, sem personagens, sem dramaturgia
nem conceitos ou estéticas ou teorias
porque o que eu quero mesmo é contar-vos esta história
porque foi uma coisa que me aconteceu mesmo
a mim, lá fora, de onde nós vimos
por isso não preciso de mais nada
e vou contá-la
já sabem o principal, ou seja
quem é o protagonista da história
que é, neste caso, o próprio autor, ou seja - eu
na verdade os autores
são sempre os protagonistas das suas histórias
mas torcem e retorcem as coisas
de forma a não serem reconhecidos
de forma a parecer que as suas histórias falam sobre toda a gente
e não apenas sobre eles próprios, que é a verdade
e isso é o mesmo que dar-nos
a nós todos que estamos aqui no teatro
vocês sentados e nós em pé
uma razão ou uma desculpa
de cá virmos e de passarmos assim a noite
porque pensamos que as histórias
também falam de nós todos
ora nesta história, já vos disse antes
o herói sou eu, o autor
e toda a história fala apenas sobre mim
digo isto para que não achem, mais tarde
que havia uma razão para terem vindo ao teatro esta noite
nasci há pouco mais de 27 anos
no hospital de santa maria
mas minto sempre e digo que nasci na amadora
a razão é que gosto muito dos subúrbios
porque se vêem as coisas de fora
na altura em que se desenrolaram os acontecimentos
que aqui vou narrar, tinha 27 anos
donde se presume que a história que vou contar
aconteceu há pouco tempo e é bem presumido
porque foi ainda não há dois meses
em pleno agosto, estava lisboa um deserto
apenas agradável a turistas de sandálias
e condutores de transportes públicos
lisboa tranquila, sem buzinas nem martelos pneumáticos
lisboa a hibernar no pico do verão
uma cidade a espreguiçar-se com nenhum gosto
lisboa com os teatros vazios
lisboa como uma criança encerrada num quarto
a ver pela janela todas as outras crianças a brincar no recreio
lisboa com tempo a mais e gente a passear na margem do rio
como se o rio não estivesse lá todo o ano
estava assim a cidade e eu nela
eu no meu apartamento
na minha rua que vai dar à praça da alegria
sem que a alegria tenha vindo alguma vez
dar à minha rua
mas, sem mais poesias, eu sozinho no meu apartamento
a saber que tenho que escrever
sem ser obrigado a fazê-lo
durante o ano, nos onze meses do ano
em que lisboa faz barulho
escrevo todos os dias para ganhar o meu
a minha profissão é plagiar o dicionário
junto palavras, com mais ou menos prazer
entrego-as todas juntas, com vírgulas a colá-las umas às outras
e recebo o meu dinheiro
há quem faça pior, há quem ande por aí a roubar
eu nem sequer roubo as palavras, mudo-lhes os lugares
e depois devolvo-as
é o que eu faço e normalmente com prazos apertados
tens três dias para mudar mil palavras de lugar
e eu digo que sim ou não, dependendo do dinheiro
digo quase sempre que sim
exactamente porque dependo do dinheiro
no entanto
neste agosto, em particular a 21 deste agosto
não tinha um dia marcado para apresentar
as palavras mudadas de lugar
nem sequer tinha a quem apresentá-las
nem sequer tinha que lhes mudar o lugar
estava sentado em frente ao computador
e repetia aquilo que tinha dito a mim próprio
todas as manhãs durante esse mês: tu começaste
a mudar palavras de lugar por prazer, foi
por isso que aprendeste o que sabes sobre as
palavras, onde está isso agora?
e recordava que
logo a seguir ao liceu, até tinha pensado que talvez descobrisse
lugares novos para as palavras
ignorava que já estavam todos ocupados
e que a maior parte das palavras já deu a volta ao mundo
pensava, na altura, que talvez houvesse nalgum ponto do planeta
talvez no pacífico, uma ilha por descobrir
onde eu pudesse meter uma palavra e dizer
meti uma palavra num lugar onde uma palavra nunca tinha estado
isto tudo para vos explicar
(e passo já à acção da história)
que estava em casa há vinte dias a convencer-me
de que tinha chegado o momento de escrever
o que sempre tinha querido escrever
e que não escrevia porque tinha que escrever para sobreviver
eu sabia que este mês parado, um mês sem compromissos
era a oportunidade que o tempo me dava de dizer
aquilo que omitia diariamente
fazendo-me desejar que agosto aterrasse em lisboa
para eu ter tempo para as minhas coisas
as minhas ideias, as minhas histórias
este era o mês em que não ia sentir-me diluído
em trezentas mil coisas para fazer
que não são o que eu realmente tenho para fazer
e agosto chegou e durante vinte dias o deserto
porque era agosto e estava um silêncio fodido
desculpem a palavra mas não me apetece pôr neste lugar
outra palavra porque esta é que merece o lugar
a seguir a agosto deve vir silêncio
e a seguir a silêncio deve vir fodido
mesmo assim, fodido
eu sentei-me, de manhã, e liguei o computador
como noutras manhãs, mal tinha chegado o momento de escrever
e já me estava a levantar para fazer café e fumar cigarros
irritava-me o silêncio da cidade
abria a janela da sala e a janela da cozinha
para o barulho poder entrar e ele não vinha
nem sequer uma corrente de ar que fizesse tremer os cortinados
fazia-me falta o rumor do trânsito na avenida da liberdade
o cão minúsculo do meu vizinho que ladra a tudo quanto
passa na minha rua e que o meu vizinho levou de férias para o algarve
faziam-me falta as crianças do andar de cima que pertence
a uma senhora que é ama e toma conta de quatro crianças
sempre aos berros desde as oito da manhã
sempre a deixarem cair brinquedos no soalho
a arrastarem os móveis, autênticos selvagens
que não me deixam dormir
e faziam-me falta, já não conseguia escrever sem o barulho das crianças
que só param duas horas à tarde para fazer a sesta
e eu estou tão habituado ao barulho delas enquanto escrevo
que à hora da sesta não me sai uma palavra
porque está tudo demasiado silencioso
e até me habituei eu mesmo a fazer a sesta
a meio da tarde, as crianças a dormir no andar de cima
e eu, sem conseguir escrever, a dormir no sofá
e agora os pais levaram os miúdos com eles para a terrinha
ou para a praia e ficou só a ama, que é silenciosa
como um cadáver e os dias parecem sestas de vinte e quatro horas
nesse dia 21 também me faziam falta
as notícias velozes na televisão
tenho a televisão sempre ligada quando estou em casa
mesmo que esteja todo o tempo de costas para ela
e a televisão estava lenta em agosto
à parte uns incêndios que não queimaram gente
a televisão parecia um aquário
tudo igual e pacífico, apenas uns peixes com ar imbecil
a nadar em círculos
já não havia crises políticas
nem possíveis eleições antecipadas
nem prisões preventivas de alegados pedófilos
portugal já não sonhava em ser campeão europeu
ficaram só as bandeiras
como as fardas comunistas vendidas tipo souvenir
depois da queda da união soviética
e nem sequer havia vento neste agosto
para fazer esvoaçar as bandeiras
que iam perdendo a cor por causa do banho de sol
sobre a cidade
e eu a tentar escrever
e faltava-me a pressa de chegar pontualmente
atrasado a uma reunião
onde todos têm ideias e perguntas e respostas
e faltavam-me os comentários políticos nas rádios
as análises económicas, as cotações da bolsa
a multidão de gente igual a mim
que tem coisas para dizer
e é como se virássemos um teatro ao contrário
e estivessem quinhentos actores sentados na plateia a falar
para três espectadores que estão em palco a ouvir
faltava-me tudo aquilo que tenho durante os onze meses
em que lisboa faz barulho
tudo aquilo de que me quero livrar para poder escrever
o que me interessa
era o que agora me faltava porque não suporto o silêncio
só consigo escrever rodeado do ruído que não me deixa escrever
não é que me faltem ideias
pelo contrário, tenho imensas ideias
algumas até são minhas
mas quando me sento para escrever
depois de beber o café e fumar os cigarros
leio no bloco de notas, escolho uma ideia
e preciso que ela esteja rodeada de outras ideias
milhares delas, de outras pessoas
quero sentir que a minha ideia se vai diluir nas dos outros
que não é definitiva, que a humanidade não depende dela
não quero que ela seja a única ideia de agosto
que nasça no meio do silêncio e prove ser
como sempre acontece
uma ideia inútil
no meio do silêncio, todas as minhas ideias
parecem menores, desprezíveis, juvenis
se vou escrever em agosto
se vou escrever para mim, sem ganhar dinheiro com isso
é porque vou escrever o que tenho realmente para dizer
o que tenho necessidade de dizer
e no meio do silêncio de agosto suspeitei que talvez
não tivesse nada para dizer
e isto é que é realmente importante nesta história
o que eu queria fazer em agosto
era fabricar um espelho
o que eu escrevesse era o que tinha para dizer ao mundo
e fosse o que fosse, era o que eu sou
não podia ser uma merda qualquer
não podia ser só mais uma coisa
tinha que ser eu
e eu tinha histórias para contar
mas não achava que nenhuma fosse
suficientemente importante para ser eu
para ser o que os outros pensam que eu sou
não me chegava falar da história de amor entre uma fisioterapeuta
e o deficiente motor que ela está a tratar
uma prova de que o amor ultrapassa todos os obstáculos
não me chegava a história da mulher que abandona a família
mas compra um bilhete de ida e volta
como se não fosse dona do seu destino
não me chegava a história de uma prostituta brasileira
assassinada pelo próprio pai que tinha vindo de propósito duma aldeia do interior
do brasil para saber se era verdade o que diziam as más línguas
que a filha dele era puta em lisboa
não me chegava nenhuma das histórias que tinha na cabeça
porque não eram importantes ao ponto de ser
o que eu tenho para dizer ao mundo
que não tem que ser alguma coisa genial
que fique para a História
eu não quero escrever a bíblia
eu já li a bíblia, vocês já leram a bíblia?
o que eu quero escrever não tem que ser uma obra prima
eu sei que tipo de coisa seria
sei exactamente, seria alguma coisa parecida
com o único quadro que comprei na minha vida
na feira da ladra, há uns anos
tenho-o pendurado na sala, ao lado da mesa
onde está o computador, é uma paisagem
um rio com uma ponte, as margens relvadas com três árvores
no rio está um barco e dentro dele um pescador
o pescador tem um chapéu azul e segura uma cana de pesca
o curioso é que a cana está apontada para a margem
e não para o rio
seguindo o fio da cana de pesca com o olhar
reparamos que o anzol não está dentro de água
mas enterrado numa das margens
parece que está a pescar toupeiras
foi o que eu pensei quando comprei o quadro
foi barato, o vendedor disse
faço-lhe um preço especial
ninguém quer comprar esse
o pintor enganou-se, já reparou?
eu já tinha reparado, era por isso que o estava a comprar
a história que queria escrever em agosto era este quadro
um quadro destes, uma paisagem banal pintada por um amador
uma situação normal com um erro
devia ser assim a minha história
uma coisa que eu quisesse pendurar na minha parede
estava eu a pensar, nesse dia 21
já era hora de almoço e nada escrito
e então começa a história, sim, só começa aqui
reparem que agora o tempo verbal passa a ser o presente
para dar outro ritmo à história, acabada de começar
levanto-me da mesa e esqueço-me desligar o computador
pego na carteira, verifico se tenho os documentos
saio de casa, nas escadas passo pela vizinha do primeiro andar
mora sozinha, estuda jornalismo e trabalha numa loja das amoreiras
tem vestida uma t-shirt da madonna
eu digo
ela vem dar um concerto a lisboa em setembro
ela diz
os bilhetes são muito caros, vou ver se arranjo convite
eu digo
adeus, boa sorte
ela diz
adeus, obrigada e mete as chaves à porta
saio do prédio e desço a rua até à praça da alegria
apanho um táxi, é para o aeroporto
os estofos de cabedal estão a escaldar
mas a corrida não demora nada, as ruas estão vazias
saio no aeroporto que faz ainda mais eco do que o habitual
só turistas de sandálias e muito espaço vazio para fazer eco
vou à bilheteira e peço um bilhete para oslo
como se pedisse um bilhete para a sessão das nove e meia no cinema
o avião sai daqui a umas horas, passeio pelo aeroporto
vejo uma mulher que fala com sotaque brasileiro
perguntar nas informações se o voo que vem
de salvador da baía já chegou
pelos saltos, a chiclete mastigada de boca aberta, a saia muito curta
a maquilhagem e o andar quase dançado
reconheço a prostituta da minha história
ali está ela, a minha personagem
umas horas antes da história começar
umas horas antes do pai chegar do brasil, descobrir a verdade
e consumar o crime de honra, estrangulando-a
no pequeno apartamento que o chulo dela alugou
perto da praça do chile
penso que a prostituta da minha história tem mais encanto
que esta, pedindo informações, tão real, tão mulher
é demasiado humana
por isso fujo dela e vou na direcção
da porta de embarque e já no avião
que levanta voo reparo apenas numa passageira
apesar do avião ir quase cheio
uma mulher que chora e segura um bilhete de ida e volta
e penso, é a mulher da minha história
aquela que abandona a família
mas um hospedeiro loiro passa por ela
e a mulher do bilhete de ida e volta pisca-lhe o olho
e eu penso, esta é demasiado imperfeita
a minha personagem era perfeita, vencida pelo destino
esta mulher real, aqui no avião, ainda tem esperança
ainda é demasiado humana
e isto bastou para que a viagem chegasse ao fim
apenas nuvens lá fora
nuvens que esconderam madrid, paris, bruxelas
amesterdão, berlim, zurique, viena, copenhaga
todas as cidades por onde podemos ter passado
escondidas por nuvens que só terminam agora
enquanto o avião desce para oslo
e já no aeroporto vejo um casal que discute
ele numa cadeira de rodas e ela de pé
ele que grita e ela que lhe vira as costas
e o abandona, na sua cadeira metálica, incapaz de a acompanhar
perdido no meio do aeroporto de oslo
e penso que o amor não ultrapassa todos os obstáculos
e aquela mulher queria um homem que pudesse
correr com ela num parque, ensinar os filhos a andar de biciclete
e por isso foi embora, foi humana
ao sair do aeroporto ouço um murmúrio agudo
penso, é do avião, foi a descida
à medida que me aproxima do centro da cidade
o murmúrio aumenta de intensidade
observo o taxista que me conduz e não parece
incomodado pelo ruído
saio do táxi perto do porto de oslo
e o murmúrio transforma-se num zumbido
mas nem os marinheiros que saem dos barcos
nem os homens e mulheres loiros sentados nas esplanadas
parecem dar conta, o ruído não os incomoda
como as pessoas que vivem numa terra onde há uma fábrica de celulose
habituam-se ao cheiro e já nem dão conta
que o sítio onde vivem cheira a merda
e enquanto anoitece em oslo
eu vou passeando e o som-zumbido-ruído
torna-se cada vez mais intenso
e eu vou andando na direcção de onde me parece vir o som
passo pelo jardim do palácio real
pelas ruas vazias onde os semáforos são diferentes
pelas praças onde os corvos são tantos que
parecem os pombos de lisboa
e o ruído é cada vez mais intenso
faz-me vibrar o esterno e eu caminho
cigarro após cigarro
na direcção do ruído e depois amanhece
e são quase nove da manhã
quando o ruído se torna insuportável
e eu estaco em frente a um prédio
é dali que vem o ruído e na fachada do prédio
por cima da porta está escrito Museu Munch
então a porta abre-se
e eu fico ali uns minutos a fumar cigarros
a desfrutar do ruído insuportável
algumas pessoas entram, estrangeiros como eu
eu entro também e o ruído toma conta de mim
puxa-me na sua direcção como se de súbito eu tivesse fios
presos às minhas mão e pés
e só deixo de me sentir uma marioneta quando os meus olhos
dão com um quadro e aí o ruído torna-se um grito
um grito impossível que me deixa sereno
o quadro, uma pintura sobre cartão em vez de tela
uma pessoa numa ponte
as mãos na cabeça e a boca escancarada
uma pessoa que grita e tapa os ouvidos para não ouvir um grito
uma mãe bósnia que perdeu o filho na guerra
um funcionário público que foi despedido
uma bailarina no meio da coreografia
debaixo do quadro está escrito
o grito, edward munch, mil oitocentos e noventa e três
eu pego no quadro, puxo-o na minha direcção
como se o quisesse abraçar
ele está preso à parede por fios que se rompem facilmente
as pessoas à minha volta olham-me
alguns sorriem, ninguém diz nem faz nada
a mim parece-me natural
o grito é agora tão forte que não ouço mais nada
nem os meus passos, nem as vozes dos outros, nem o meu coração a bater
enquanto caminho para a saída vejo outro quadro
uma mulher nua de sorriso perverso
o quadro chama-se madonna
mas eu acho a mulher pintada mais parecida
com a minha vizinha do primeiro andar do que com a madonna
trago esse também e calmamente
saio do edifício com um quadro em cada mão
surdo com o ruído que me acompanha
enquanto apanho outro avião
chego a lisboa, passo pela praça da alegria
e entro no meu prédio
paro no primeiro andar e bato à porta da minha vizinha
ele fica parada nas escadas, feliz, espantada
quando eu lhe entrego o quadro da madonna
assim já não precisas de convite nenhum
subo para minha casa, passo a cara por água
e penduro o grito ao lado do meu quadro do pescador de toupeiras
os dois, lado a lado, na minha parede
um quadro tem o ruído que me faz falta para trabalhar
um grito constante que nunca mais deixará que agosto seja um mês
de silêncio fodido
o outro quadro tem aquilo que eu quero dizer ao mundo
um custa milhões de dólares
e ou outro custou dois euros na feira da ladra
os dois na mesma parede
e mesmo assim continuo a preferir o do pescador
e assim acaba a minha história
a história de como nesse domingo
dia 22 de agosto
roubei o grito em oslo
e consegui sentar-me para escrever
o que realmente quero escrever e dizer ao mundo
continuo a escrever todos os dias
é um romance e acho que pode ser muito bom
a única altura em que tenho dúvidas disso é à hora da sesta
o verão acabou e as crianças do andar de cima voltaram
só para a meio da tarde para dormir a sesta
a essa hora eu tiro o grito da parede
deito-o no chão e cubro-o com todos os cobertores que tenho em casa
e deito-me em cima deles para dormir
continua, mesmo assim, a ouvir-se uma espécie de gemido
um grito abafado, vindo de longe
que se mistura com os murmúrios ténues
que saem das bocas das crianças enquanto sonham
todos os dias, quando me deito sobre o grito
à hora da sesta, mesmo antes de adormecer
faz-se silêncio e nesse momento
tenho a certeza de que o romance que estou a escrever
é inútil
obrigado por terem vindo ao teatro
e agora vou directo ao que interessa
estou aqui no palco para vos contar uma história
é uma história real, passou-se comigo
e apesar de se ter passado comigo é uma boa história
por isso, se vieram cá para ver teatro
talvez seja altura de vos avisar que não estou
aqui neste palco para fazer teatro
estou aqui, eu mesmo, eu pessoa real
eu, que vim agora da vida real
lá de fora da rua, dos restaurantes e dos táxis
de onde vocês também vêm
e estou aqui para vos contar uma história
que é igual a fazer teatro, mas sem merdas
sem merdas à volta, sem personagens, sem dramaturgia
nem conceitos ou estéticas ou teorias
porque o que eu quero mesmo é contar-vos esta história
porque foi uma coisa que me aconteceu mesmo
a mim, lá fora, de onde nós vimos
por isso não preciso de mais nada
e vou contá-la
já sabem o principal, ou seja
quem é o protagonista da história
que é, neste caso, o próprio autor, ou seja - eu
na verdade os autores
são sempre os protagonistas das suas histórias
mas torcem e retorcem as coisas
de forma a não serem reconhecidos
de forma a parecer que as suas histórias falam sobre toda a gente
e não apenas sobre eles próprios, que é a verdade
e isso é o mesmo que dar-nos
a nós todos que estamos aqui no teatro
vocês sentados e nós em pé
uma razão ou uma desculpa
de cá virmos e de passarmos assim a noite
porque pensamos que as histórias
também falam de nós todos
ora nesta história, já vos disse antes
o herói sou eu, o autor
e toda a história fala apenas sobre mim
digo isto para que não achem, mais tarde
que havia uma razão para terem vindo ao teatro esta noite
nasci há pouco mais de 27 anos
no hospital de santa maria
mas minto sempre e digo que nasci na amadora
a razão é que gosto muito dos subúrbios
porque se vêem as coisas de fora
na altura em que se desenrolaram os acontecimentos
que aqui vou narrar, tinha 27 anos
donde se presume que a história que vou contar
aconteceu há pouco tempo e é bem presumido
porque foi ainda não há dois meses
em pleno agosto, estava lisboa um deserto
apenas agradável a turistas de sandálias
e condutores de transportes públicos
lisboa tranquila, sem buzinas nem martelos pneumáticos
lisboa a hibernar no pico do verão
uma cidade a espreguiçar-se com nenhum gosto
lisboa com os teatros vazios
lisboa como uma criança encerrada num quarto
a ver pela janela todas as outras crianças a brincar no recreio
lisboa com tempo a mais e gente a passear na margem do rio
como se o rio não estivesse lá todo o ano
estava assim a cidade e eu nela
eu no meu apartamento
na minha rua que vai dar à praça da alegria
sem que a alegria tenha vindo alguma vez
dar à minha rua
mas, sem mais poesias, eu sozinho no meu apartamento
a saber que tenho que escrever
sem ser obrigado a fazê-lo
durante o ano, nos onze meses do ano
em que lisboa faz barulho
escrevo todos os dias para ganhar o meu
a minha profissão é plagiar o dicionário
junto palavras, com mais ou menos prazer
entrego-as todas juntas, com vírgulas a colá-las umas às outras
e recebo o meu dinheiro
há quem faça pior, há quem ande por aí a roubar
eu nem sequer roubo as palavras, mudo-lhes os lugares
e depois devolvo-as
é o que eu faço e normalmente com prazos apertados
tens três dias para mudar mil palavras de lugar
e eu digo que sim ou não, dependendo do dinheiro
digo quase sempre que sim
exactamente porque dependo do dinheiro
no entanto
neste agosto, em particular a 21 deste agosto
não tinha um dia marcado para apresentar
as palavras mudadas de lugar
nem sequer tinha a quem apresentá-las
nem sequer tinha que lhes mudar o lugar
estava sentado em frente ao computador
e repetia aquilo que tinha dito a mim próprio
todas as manhãs durante esse mês: tu começaste
a mudar palavras de lugar por prazer, foi
por isso que aprendeste o que sabes sobre as
palavras, onde está isso agora?
e recordava que
logo a seguir ao liceu, até tinha pensado que talvez descobrisse
lugares novos para as palavras
ignorava que já estavam todos ocupados
e que a maior parte das palavras já deu a volta ao mundo
pensava, na altura, que talvez houvesse nalgum ponto do planeta
talvez no pacífico, uma ilha por descobrir
onde eu pudesse meter uma palavra e dizer
meti uma palavra num lugar onde uma palavra nunca tinha estado
isto tudo para vos explicar
(e passo já à acção da história)
que estava em casa há vinte dias a convencer-me
de que tinha chegado o momento de escrever
o que sempre tinha querido escrever
e que não escrevia porque tinha que escrever para sobreviver
eu sabia que este mês parado, um mês sem compromissos
era a oportunidade que o tempo me dava de dizer
aquilo que omitia diariamente
fazendo-me desejar que agosto aterrasse em lisboa
para eu ter tempo para as minhas coisas
as minhas ideias, as minhas histórias
este era o mês em que não ia sentir-me diluído
em trezentas mil coisas para fazer
que não são o que eu realmente tenho para fazer
e agosto chegou e durante vinte dias o deserto
porque era agosto e estava um silêncio fodido
desculpem a palavra mas não me apetece pôr neste lugar
outra palavra porque esta é que merece o lugar
a seguir a agosto deve vir silêncio
e a seguir a silêncio deve vir fodido
mesmo assim, fodido
eu sentei-me, de manhã, e liguei o computador
como noutras manhãs, mal tinha chegado o momento de escrever
e já me estava a levantar para fazer café e fumar cigarros
irritava-me o silêncio da cidade
abria a janela da sala e a janela da cozinha
para o barulho poder entrar e ele não vinha
nem sequer uma corrente de ar que fizesse tremer os cortinados
fazia-me falta o rumor do trânsito na avenida da liberdade
o cão minúsculo do meu vizinho que ladra a tudo quanto
passa na minha rua e que o meu vizinho levou de férias para o algarve
faziam-me falta as crianças do andar de cima que pertence
a uma senhora que é ama e toma conta de quatro crianças
sempre aos berros desde as oito da manhã
sempre a deixarem cair brinquedos no soalho
a arrastarem os móveis, autênticos selvagens
que não me deixam dormir
e faziam-me falta, já não conseguia escrever sem o barulho das crianças
que só param duas horas à tarde para fazer a sesta
e eu estou tão habituado ao barulho delas enquanto escrevo
que à hora da sesta não me sai uma palavra
porque está tudo demasiado silencioso
e até me habituei eu mesmo a fazer a sesta
a meio da tarde, as crianças a dormir no andar de cima
e eu, sem conseguir escrever, a dormir no sofá
e agora os pais levaram os miúdos com eles para a terrinha
ou para a praia e ficou só a ama, que é silenciosa
como um cadáver e os dias parecem sestas de vinte e quatro horas
nesse dia 21 também me faziam falta
as notícias velozes na televisão
tenho a televisão sempre ligada quando estou em casa
mesmo que esteja todo o tempo de costas para ela
e a televisão estava lenta em agosto
à parte uns incêndios que não queimaram gente
a televisão parecia um aquário
tudo igual e pacífico, apenas uns peixes com ar imbecil
a nadar em círculos
já não havia crises políticas
nem possíveis eleições antecipadas
nem prisões preventivas de alegados pedófilos
portugal já não sonhava em ser campeão europeu
ficaram só as bandeiras
como as fardas comunistas vendidas tipo souvenir
depois da queda da união soviética
e nem sequer havia vento neste agosto
para fazer esvoaçar as bandeiras
que iam perdendo a cor por causa do banho de sol
sobre a cidade
e eu a tentar escrever
e faltava-me a pressa de chegar pontualmente
atrasado a uma reunião
onde todos têm ideias e perguntas e respostas
e faltavam-me os comentários políticos nas rádios
as análises económicas, as cotações da bolsa
a multidão de gente igual a mim
que tem coisas para dizer
e é como se virássemos um teatro ao contrário
e estivessem quinhentos actores sentados na plateia a falar
para três espectadores que estão em palco a ouvir
faltava-me tudo aquilo que tenho durante os onze meses
em que lisboa faz barulho
tudo aquilo de que me quero livrar para poder escrever
o que me interessa
era o que agora me faltava porque não suporto o silêncio
só consigo escrever rodeado do ruído que não me deixa escrever
não é que me faltem ideias
pelo contrário, tenho imensas ideias
algumas até são minhas
mas quando me sento para escrever
depois de beber o café e fumar os cigarros
leio no bloco de notas, escolho uma ideia
e preciso que ela esteja rodeada de outras ideias
milhares delas, de outras pessoas
quero sentir que a minha ideia se vai diluir nas dos outros
que não é definitiva, que a humanidade não depende dela
não quero que ela seja a única ideia de agosto
que nasça no meio do silêncio e prove ser
como sempre acontece
uma ideia inútil
no meio do silêncio, todas as minhas ideias
parecem menores, desprezíveis, juvenis
se vou escrever em agosto
se vou escrever para mim, sem ganhar dinheiro com isso
é porque vou escrever o que tenho realmente para dizer
o que tenho necessidade de dizer
e no meio do silêncio de agosto suspeitei que talvez
não tivesse nada para dizer
e isto é que é realmente importante nesta história
o que eu queria fazer em agosto
era fabricar um espelho
o que eu escrevesse era o que tinha para dizer ao mundo
e fosse o que fosse, era o que eu sou
não podia ser uma merda qualquer
não podia ser só mais uma coisa
tinha que ser eu
e eu tinha histórias para contar
mas não achava que nenhuma fosse
suficientemente importante para ser eu
para ser o que os outros pensam que eu sou
não me chegava falar da história de amor entre uma fisioterapeuta
e o deficiente motor que ela está a tratar
uma prova de que o amor ultrapassa todos os obstáculos
não me chegava a história da mulher que abandona a família
mas compra um bilhete de ida e volta
como se não fosse dona do seu destino
não me chegava a história de uma prostituta brasileira
assassinada pelo próprio pai que tinha vindo de propósito duma aldeia do interior
do brasil para saber se era verdade o que diziam as más línguas
que a filha dele era puta em lisboa
não me chegava nenhuma das histórias que tinha na cabeça
porque não eram importantes ao ponto de ser
o que eu tenho para dizer ao mundo
que não tem que ser alguma coisa genial
que fique para a História
eu não quero escrever a bíblia
eu já li a bíblia, vocês já leram a bíblia?
o que eu quero escrever não tem que ser uma obra prima
eu sei que tipo de coisa seria
sei exactamente, seria alguma coisa parecida
com o único quadro que comprei na minha vida
na feira da ladra, há uns anos
tenho-o pendurado na sala, ao lado da mesa
onde está o computador, é uma paisagem
um rio com uma ponte, as margens relvadas com três árvores
no rio está um barco e dentro dele um pescador
o pescador tem um chapéu azul e segura uma cana de pesca
o curioso é que a cana está apontada para a margem
e não para o rio
seguindo o fio da cana de pesca com o olhar
reparamos que o anzol não está dentro de água
mas enterrado numa das margens
parece que está a pescar toupeiras
foi o que eu pensei quando comprei o quadro
foi barato, o vendedor disse
faço-lhe um preço especial
ninguém quer comprar esse
o pintor enganou-se, já reparou?
eu já tinha reparado, era por isso que o estava a comprar
a história que queria escrever em agosto era este quadro
um quadro destes, uma paisagem banal pintada por um amador
uma situação normal com um erro
devia ser assim a minha história
uma coisa que eu quisesse pendurar na minha parede
estava eu a pensar, nesse dia 21
já era hora de almoço e nada escrito
e então começa a história, sim, só começa aqui
reparem que agora o tempo verbal passa a ser o presente
para dar outro ritmo à história, acabada de começar
levanto-me da mesa e esqueço-me desligar o computador
pego na carteira, verifico se tenho os documentos
saio de casa, nas escadas passo pela vizinha do primeiro andar
mora sozinha, estuda jornalismo e trabalha numa loja das amoreiras
tem vestida uma t-shirt da madonna
eu digo
ela vem dar um concerto a lisboa em setembro
ela diz
os bilhetes são muito caros, vou ver se arranjo convite
eu digo
adeus, boa sorte
ela diz
adeus, obrigada e mete as chaves à porta
saio do prédio e desço a rua até à praça da alegria
apanho um táxi, é para o aeroporto
os estofos de cabedal estão a escaldar
mas a corrida não demora nada, as ruas estão vazias
saio no aeroporto que faz ainda mais eco do que o habitual
só turistas de sandálias e muito espaço vazio para fazer eco
vou à bilheteira e peço um bilhete para oslo
como se pedisse um bilhete para a sessão das nove e meia no cinema
o avião sai daqui a umas horas, passeio pelo aeroporto
vejo uma mulher que fala com sotaque brasileiro
perguntar nas informações se o voo que vem
de salvador da baía já chegou
pelos saltos, a chiclete mastigada de boca aberta, a saia muito curta
a maquilhagem e o andar quase dançado
reconheço a prostituta da minha história
ali está ela, a minha personagem
umas horas antes da história começar
umas horas antes do pai chegar do brasil, descobrir a verdade
e consumar o crime de honra, estrangulando-a
no pequeno apartamento que o chulo dela alugou
perto da praça do chile
penso que a prostituta da minha história tem mais encanto
que esta, pedindo informações, tão real, tão mulher
é demasiado humana
por isso fujo dela e vou na direcção
da porta de embarque e já no avião
que levanta voo reparo apenas numa passageira
apesar do avião ir quase cheio
uma mulher que chora e segura um bilhete de ida e volta
e penso, é a mulher da minha história
aquela que abandona a família
mas um hospedeiro loiro passa por ela
e a mulher do bilhete de ida e volta pisca-lhe o olho
e eu penso, esta é demasiado imperfeita
a minha personagem era perfeita, vencida pelo destino
esta mulher real, aqui no avião, ainda tem esperança
ainda é demasiado humana
e isto bastou para que a viagem chegasse ao fim
apenas nuvens lá fora
nuvens que esconderam madrid, paris, bruxelas
amesterdão, berlim, zurique, viena, copenhaga
todas as cidades por onde podemos ter passado
escondidas por nuvens que só terminam agora
enquanto o avião desce para oslo
e já no aeroporto vejo um casal que discute
ele numa cadeira de rodas e ela de pé
ele que grita e ela que lhe vira as costas
e o abandona, na sua cadeira metálica, incapaz de a acompanhar
perdido no meio do aeroporto de oslo
e penso que o amor não ultrapassa todos os obstáculos
e aquela mulher queria um homem que pudesse
correr com ela num parque, ensinar os filhos a andar de biciclete
e por isso foi embora, foi humana
ao sair do aeroporto ouço um murmúrio agudo
penso, é do avião, foi a descida
à medida que me aproxima do centro da cidade
o murmúrio aumenta de intensidade
observo o taxista que me conduz e não parece
incomodado pelo ruído
saio do táxi perto do porto de oslo
e o murmúrio transforma-se num zumbido
mas nem os marinheiros que saem dos barcos
nem os homens e mulheres loiros sentados nas esplanadas
parecem dar conta, o ruído não os incomoda
como as pessoas que vivem numa terra onde há uma fábrica de celulose
habituam-se ao cheiro e já nem dão conta
que o sítio onde vivem cheira a merda
e enquanto anoitece em oslo
eu vou passeando e o som-zumbido-ruído
torna-se cada vez mais intenso
e eu vou andando na direcção de onde me parece vir o som
passo pelo jardim do palácio real
pelas ruas vazias onde os semáforos são diferentes
pelas praças onde os corvos são tantos que
parecem os pombos de lisboa
e o ruído é cada vez mais intenso
faz-me vibrar o esterno e eu caminho
cigarro após cigarro
na direcção do ruído e depois amanhece
e são quase nove da manhã
quando o ruído se torna insuportável
e eu estaco em frente a um prédio
é dali que vem o ruído e na fachada do prédio
por cima da porta está escrito Museu Munch
então a porta abre-se
e eu fico ali uns minutos a fumar cigarros
a desfrutar do ruído insuportável
algumas pessoas entram, estrangeiros como eu
eu entro também e o ruído toma conta de mim
puxa-me na sua direcção como se de súbito eu tivesse fios
presos às minhas mão e pés
e só deixo de me sentir uma marioneta quando os meus olhos
dão com um quadro e aí o ruído torna-se um grito
um grito impossível que me deixa sereno
o quadro, uma pintura sobre cartão em vez de tela
uma pessoa numa ponte
as mãos na cabeça e a boca escancarada
uma pessoa que grita e tapa os ouvidos para não ouvir um grito
uma mãe bósnia que perdeu o filho na guerra
um funcionário público que foi despedido
uma bailarina no meio da coreografia
debaixo do quadro está escrito
o grito, edward munch, mil oitocentos e noventa e três
eu pego no quadro, puxo-o na minha direcção
como se o quisesse abraçar
ele está preso à parede por fios que se rompem facilmente
as pessoas à minha volta olham-me
alguns sorriem, ninguém diz nem faz nada
a mim parece-me natural
o grito é agora tão forte que não ouço mais nada
nem os meus passos, nem as vozes dos outros, nem o meu coração a bater
enquanto caminho para a saída vejo outro quadro
uma mulher nua de sorriso perverso
o quadro chama-se madonna
mas eu acho a mulher pintada mais parecida
com a minha vizinha do primeiro andar do que com a madonna
trago esse também e calmamente
saio do edifício com um quadro em cada mão
surdo com o ruído que me acompanha
enquanto apanho outro avião
chego a lisboa, passo pela praça da alegria
e entro no meu prédio
paro no primeiro andar e bato à porta da minha vizinha
ele fica parada nas escadas, feliz, espantada
quando eu lhe entrego o quadro da madonna
assim já não precisas de convite nenhum
subo para minha casa, passo a cara por água
e penduro o grito ao lado do meu quadro do pescador de toupeiras
os dois, lado a lado, na minha parede
um quadro tem o ruído que me faz falta para trabalhar
um grito constante que nunca mais deixará que agosto seja um mês
de silêncio fodido
o outro quadro tem aquilo que eu quero dizer ao mundo
um custa milhões de dólares
e ou outro custou dois euros na feira da ladra
os dois na mesma parede
e mesmo assim continuo a preferir o do pescador
e assim acaba a minha história
a história de como nesse domingo
dia 22 de agosto
roubei o grito em oslo
e consegui sentar-me para escrever
o que realmente quero escrever e dizer ao mundo
continuo a escrever todos os dias
é um romance e acho que pode ser muito bom
a única altura em que tenho dúvidas disso é à hora da sesta
o verão acabou e as crianças do andar de cima voltaram
só para a meio da tarde para dormir a sesta
a essa hora eu tiro o grito da parede
deito-o no chão e cubro-o com todos os cobertores que tenho em casa
e deito-me em cima deles para dormir
continua, mesmo assim, a ouvir-se uma espécie de gemido
um grito abafado, vindo de longe
que se mistura com os murmúrios ténues
que saem das bocas das crianças enquanto sonham
todos os dias, quando me deito sobre o grito
à hora da sesta, mesmo antes de adormecer
faz-se silêncio e nesse momento
tenho a certeza de que o romance que estou a escrever
é inútil
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