13.10.04

As vossas urgências

No dia em que morreste. Deixei a Sandra no banho. Deixei o Gonçalo no colégio. Comprei o jornal. Sentei-me numa esplanada a tomar o pequeno almoço. No céu cinzento um desalento de plátanos. Um esvoaçar de Outonos.
E como estava longe de saber que ias morrer nesse dia. Pousei o jornal sobre a mesa. Comi como sempre um croissant misto. Um galão de máquina com leite frio, enquanto olhava distraído o sorriso largo de um sequestrado polaco sobre um avião sem trem de aterragem no aeroporto da Portela. Às primeiras gotas de chuva fugi para debaixo do toldo. Vi a rua reflectida no enorme vidro da pastelaria. Vi o meu rosto reflectido no meio da rua. Uma confusão de cidades. Uma vertigem de gaivotas. Começava a chover a sério. E não sei porque carga de água desliguei o telemóvel tirei a gravata tirei o casaco faltei ao trabalho comprei um maço de tabaco e fui até aquela estrada do guincho não sei bem para quê.
Nesse dia em que eu não sabia que ias morrer, paguei vinte euros a uma puta que me encharcou o carro todo. Comi duas mousses de chocolate ao almoço. Fiz três ou quatro horizontais. Não admite delongas com sete letras. Fácil. Li o horóscopo dos signos todos. Fiquei o resto da tarde sentado no carro a assistir à tempestade de chumbo que se abatia sobre o mar.
Não me lembro se cheguei a dormir. Nem do caminho de regresso a casa. Nem de que horas eram ou se já tinha anoitecido. Lembro-me de subir as escadas do prédio à procura daquele poema tramado. Aquele do homem e da mulher que numa tarde de chuva entre zunidos de conversa inventaram o amor com carácter de urgência. Lembro-me de ouvir lá em cima o Gonçalo brincar. Lembro-me da Sandra que sentiu os meus passos. Da Sandra que me abriu a porta com lágrimas nos olhos e me abraçou. Já sabes?
Também me lembro. E vai ser difícil esquecer. De pegar no telemóvel e ouvir a tua mensagem das 10H38m do cabrão do dia em que morreste. Mais logo ligavas. Não era nada de urgente.

Uma Urgência enviada por João Ricardo Pedro para urgencias@sapo.pt